Cabo Ligado Mensal: Outubro de 2021

Outubro em Relance

Estatísticas Vitais

  • ACLED registrou 19 eventos de violência política organizada em Outubro, resultando em 62 fatalidades

  • As fatalidades relatadas foram mais elevadas no distrito de Mocímboa da Praia, onde as operações das forças moçambicanas e aliados estrangeiros contra insurgentes perto do rio Messalo continuam

  • Outros eventos tiveram lugar nos distritos de Macomia, Meluco, Muidumbe, Nangade, Palma e Quissanga

Tendências Vitais 

  • As tropas moçambicanas, ruandesas e da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) trabalharam para consolidar os seus ganhos contra os insurgentes em Outubro, abrindo mais áreas da zona de conflito para os civis que regressavam

  • Pilhagem e / ou destruição de bens civis por tropas moçambicanas e milícias pró-governamentais também aumentou em Outubro - ACLED registrou oito casos de pilhagem e / ou destruição de bens civis perpetrados pelas forças governamentais

  • O retorno dos civis deslocados aumentou o ritmo em Outubro, especialmente nos distritos de Muidumbe e Palma 

Nesta Relatório

  •  Análise do comércio informal durante o conflito, centrada especialmente na situação do comércio transfronteiriço entre Moçambique e Tanzânia

  • Análise de plano de reconstrução do governo de Moçambique para Cabo Delgado e suas implicações para o futuro político da província

  • Discussão dos programas internacionais de treinamento para as forças de segurança moçambicanas e as perspectivas de uma reforma abrangente do sector de segurança

Resumo da situação de Outubro

Em comparação com o auge do conflito, a violência em Cabo Delgado foi relativamente limitada em Outubro. No entanto, as decisões políticas tomadas nas últimas semanas terão grandes repercussões nas vidas dos residentes de Cabo Delgado - especialmente os civis deslocados que tentam regressar às suas casas em distritos afectados pelo conflito.

No próprio conflito, a história do mês foi a contínua fraqueza aparente da insurgência. Os civis que escaparam da custódia dos insurgentes durante o mês de outubro relataram que os insurgentes estão a enfrentar uma extrema escassez de abastecimento depois de serem expulsos de suas bases por ofensivas da coligação pró-governamental. Pelo menos no vale do rio Messalo, no sul dos distritos de Mocímboa da Praia e norte de Macomia, parece que os insurgentes pretendiam sustentar-se por meio da agricultura de pequena escala perto de suas bases. Sem acesso a esses campos e sem outras fontes de alimentos e outros suprimentos, os insurgentes naquela área parecem estar a sofrer.

À medida que a coligação pró-governamental ganha confiança nos seus ganhos em termos de segurança, o governo moçambicano empenha-se em moldar o ambiente pós-conflito em Cabo Delgado. Conforme abordado em profundidade neste relatório, o governo formulou um plano de reconstrução para a província que visa restaurar e expandir as infra-estruturas do Estado em áreas onde foi danificada pelas ações dos insurgentes. A curto prazo, o governo também reconheceu que a província enfrenta uma terrível escassez de alimentos, provocada pela combinação de falta de dinheiro internacional para ajuda alimentar e a incapacidade dos agricultores deslocados de se tornarem autossuficientes sem acesso à terra e insumos agrícolas. O governo encorajou os agricultores deslocados de algumas áreas a regressarem às suas casas na esperança de reiniciar a produção agrícola, e forneceu a alguns outros materiais para plantar nas comunidades de acolhimento, mas não está claro como as necessidades alimentars na província serão satisfeitas enquanto aquelas culturas estão a crescer..

Parte da incerteza em torno da alimentação vem das ações das forças de segurança moçambicanas na vila de Mocímboa da Praia e arredores em Outubro. A polícia e as unidades militares detiveram comerciantes informais que tentavam vender alimentos e outros bens em áreas afetadas pelo conflito, acusando-os de tentar abastecer os insurgentes. As interdições parecem ser tentativas das forças de segurança de extrair rendas do comércio informal. Com esse comércio a desempenhar um papel importante na distribuição de alimentos em Cabo Delgado durante a época de escassez, a extração de rendas cria uma importante questão humanitária para além das preocupações sobre o Estado de Direito que gera. 

A Dinâmica do Comércio Informal Transfronteiriço entre Cabo Delgado e Mtwara

Em Maio de 2010, o então Presidente de Moçambique, Armando Guebuza, e o então Presidente da Tanzânia, Jakaya Kikwete, inauguraram a Ponte da Unidade sobre o Rio Rovuma ligando os dois países. A inauguração da ponte simbolizou a união de dois países que andaram de mãos dadas na luta de libertação de Moçambique. No entanto, o desenvolvimento prometido em torno da ponte não se concretizou. Do lado moçambicano, a estrada de ligação a Mueda permanece sem pavimentação, enquanto no lado da Tanzânia, a estrada melhorada e as novas ligações ferroviárias para Mtwara previstas nos planos do Corredor de Desenvolvimento de Mtwara não foram implementadas. Apesar de não se tornar um grande centro de comércio, hoje a ponte representa um importante motor das relações comerciais, sociais e culturais entre o povo da província de Cabo Delgado e a região de Mtwara. 

A Ponte da Unidade liga a província de Cabo Delgado em Moçambique e a região de Mtwara na Tanzânia através dos postos fronteiriços de Negomano e Mtambaswala, respectivamente. Atualmente é o único ponto de passagem aberto para o intercâmbio comercial entre as pessoas dos dois países. A única outra passagem oficial da fronteira é de 200 km a leste, a travessia Kilambo / Namoto que liga a cidade de Mtwara ao distrito de Palma de ferry-boat. Desde que o ataque insurgente a Palma em Março de 2021 forçou o encerramento do posto fronteiriço de Kilambo / Namoto em Abril, parte do comércio da bacia do Rovuma passou para o posto fronteiriço de Negomano. Comerciantes oriundos principalmente dos distritos de Mueda, Montepuez e Pemba viajam pela Ponte da Unidade até a Tanzânia para comprar produtos como roupas, eletrônicos e cosméticos, que depois são vendidos no lado moçambicano. 

Alguns comerciantes que cruzam a fronteira de Negomano disseram a Cabo Ligado que a Tanzânia continua sendo um bom destino para fazer compras, devido aos preços acessíveis e seu relacionamento próximo com os fornecedores tanzanianos. Eles também disseram que o tratamento das autoridades tanzanianas para com os comerciantes moçambicanos continua positivo. 

Comerciantes de Palma, que antes da insurgência frequentemente viajavam para a cidade de Mtwara para negociar peixes e outros produtos, têm tido mais dificuldades aceder a Mtwara desde Abril passado, quando a fronteira de Namoto foi encerrada. Apesar do encerramento, porém, os residentes de Quionga, a noroeste de Palma, continuam a aceder ilegalmente à Tanzânia, apesar dos esforços crescentes das forças de segurança da Tanzânia para evitar travessias ilegais. Fontes locais disseram a Cabo Ligado que essencialmente quase todos os produtos que lá chegam provêm da Tanzânia.  

Entre os dois postos de fronteira oficiais existem várias passagens de fronteira não oficiais. Chikongo, no distrito de Tandahimba, é um ponto de passagem bem estabelecido que liga Tandahimba ao distrito de Nangade de canoa. Kitaya, no município de Nanyamba, a leste, é um conhecido entreposto comercial que atende o distrito de Palma, com numerosas rotas não oficiais através da fronteira nessa área. Tandahimba e Nanyamba foram os locais de todos os incidentes na região de Mtwara no banco de dados do ACLED que foram atribuídos a milícias islâmicas, incluindo o ataque espetacular a Kitaya em Outubro de 2020. Esse padrão não deve constituir nenhuma surpresa. As ligações comerciais e de transporte estabelecidas, mas informais, criam redes e relacionamentos que operam fora do controle do Estado. As operações insurgentes nessas áreas podem ter sido construídas a partir das relações e no conhecimento desenvolvidos em fronteiras porosas.

O conflito alterou os acordos comerciais tradicionais na região. Em certa época, por exemplo, o comércio formal de alimentos básicos em Palma dependia da Tanzânia como sua principal base de abastecimento. Agora, a Tanzânia proibiu a entrada dos seus produtos alimentares em território moçambicano através da fronteira com o Namoto devido ao conflito em Cabo Delgado. Como resultado, os comerciantes locais em Cabo Delgado compram principalmente produtos manufaturados na Tanzânia, enquanto a compra de alimentos é feita no mercado interno, principalmente em Pemba.  

Desde os sucessos militares da coligação pró-governamental no nordeste de Cabo Delgado, a partir de Agosto de 2020, o comércio informal entre Pemba e Palma começou a recuperar. Em Outubro, os comerciantes voltaram a deslocar-se entre Palma e Pemba via Mocímboa da Praia e Mueda. Os comerciantes são acompanhados por escoltas ruandesas no percurso da viagem entre Awasse, no distrito de Mocímboa da Praia, e Palma. O custo do transporte de Palma para Pemba varia entre 2.000 e 2.500 meticais (31 a 39 dólares norte-americanos) por pessoa, não incluindo a carga. Antes do conflito, o custo do transporte de Palma para Pemba era de 700 meticais (11 dólares norte-americanos). Os altos custos de transporte acabarão por impactar os preços dos produtos e aumentar ainda mais o custo de vida dos deslocados que regressam para casa. 

Outro factor que tem dificultado o reinício do comércio entre Pemba e Palma é a proibição de utilização da via marítima ao largo da costa de Mocímboa da Praia e Palma para transporte marítimo. Comerciantes que tentaram transportar produtos de Pemba para Palma de barco foram interceptados por forças navais e, por vezes, suspeitos de abastecer os insurgentes. Os pescadores que conseguiram regressar a Palma regressaram às suas actividades piscatórias. O restabelecimento da energia eléctrica facilitou a refrigeração do pescado e a abertura da estrada Palma-Mueda via Mocímboa da Praia permitiu-lhes deslocar-se a Mueda onde vendem o pescado com lucro. 

Em Cabo Delgado, os comerciantes estão a adaptar as suas estratégias de acordo com a dinâmica imposta pelas autoridades de Moçambique e da Tanzânia, bem como pelo conflito em curso no próprio país. A informalidade também é vista como uma estratégia para obter meios de subsistência em um contexto em que os jovens locais são em sua maioria excluídos do principal motor econômico da província: grandes projetos de extração de recursos naturais. Alguns comerciantes em Palma informaram a Cabo Ligado que, devido à falta de integração nos projectos de gás natural do distrito, optaram por envolver-se em pequenos negócios, como vendas informais, moto-táxis e outras atividades menos lucrativas. 

A ausência de uma estratégia concreta para integrar os jovens à economia formal pode torná-los vulneráveis ​​à insurgência. A Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN), uma entidade governamental criada para promover o desenvolvimento e reduzir as assimetrias na região norte do país, não oferece uma estratégia clara no seu Plano de Acção para os comerciantes informais no norte de Moçambique e Cabo Delgado em particular. No entanto, reconhece que a falta de empregos torna os jovens vulneráveis ​​às redes de recrutamento e, como solução, afirma que irá desenvolver oportunidades de emprego para os jovens.

O Comércio do Caju: Um Estudo de Caso 

O caju representa um segmento particularmente importante do comércio formal e informal entre Cabo Delgado e Mtwara. Esse comércio tem sido retardado pelo conflito, mas dificilmente interrompido. À medida que o comércio informal se expande, a abordagem de Moçambique e da Tanzânia em relação ao comércio de caju irá moldar como as redes de comércio transfronteiriço funcionarão no futuro.

Em ambos os lados do rio, a castanha de caju é uma cultura de rendimento importante para os pequenos agricultores pobres. Antes da insurgência, o comércio, o investimento de pequena escala e as atividades básicas de subsistência no corredor do Rovuma entre Mtwara e Cabo Delgado operavam com relativa liberdade. Era comum para os tanzanianos arrendarem terras agrícolas em Cabo Delgado numa base sazonal, enquanto para os produtores moçambicanos, a Tanzânia era um mercado importante para o caju e outros bens. Recentemente, em 2019, até metade da safra de castanha de caju do distrito de Nangade foi contrabandeada para a Tanzânia. Um sistema de comercialização administrado pelo Estado na Tanzânia oferece um preço mais alto para os cajus de Cabo Delgado do que pode ser obtido em Moçambique, particularmente para produtores mais isolados no norte.

No entanto, o acesso a esse sistema, mesmo em tempos de crise económica em Cabo Delgado, requer a utilização de mecanismos de mercado formais e informais. Um camião moçambicano com 15 toneladas de castanhas de caju foi parado no final de outubro de 2021 no distrito de Nanyumbu, em Mtwara, destacando o quão resiliente o comércio de caju transfronteiriço tem sido, mesmo durante o conflito, e ilustra as dificuldades do comércio. 

Segundo o Comissário Distrital de Nanyumbu, Mariamu Chaurembo, o camião foi primeiro enviado de volta a Moçambique, presumivelmente por via da Ponte da Unidade, para corrigir a sua documentação, antes de ser autorizado a prosseguir. Chaurembo alertou os comerciantes para se certificarem de cumprir os regulamentos e evitar 'njia za panya' ou rotas não autorizadas. Tais rotas - ou mais provavelmente, o uso de subornos ao longo de rotas estabelecidas - é presumivelmente como a safra entrou na Tanzânia sem a documentação adequada em primeiro lugar. 

Para que a safra de 15 toneladas possa finalmente passar para o mercado da Tanzânia, será necessário declará-la como sendo de origem da Tanzânia para entrar no Sistema de Recebimento de Armazém da Tanzânia - parte de um sistema de leilão administrado pelo Conselho do Caju da Tanzânia e cooperativas de produtores locais. Como os cajus são moçambicanos, mais alguma documentação terá que ser falsificada ao longo do caminho para garantir que a safra seja vendida. 

Os políticos tanzanianos recomendaram mais de uma vez que os dois Estados apoiassem e encorajassem ativamente a liberdade de comércio e movimento como parte da reconstrução pós-conflito em Cabo Delgado. No entanto, fazê-lo de facto, especialmente no setor do caju, iria contra interesses estabelecidos. O comércio livre ao longo do Rovuma afetaria negativamente aqueles que se beneficiam dos aluguéis existentes na entrada do mercado na Tanzânia, bem como reduziria os preços para os produtores de caju da Tanzânia. Do lado moçambicano, tanto o Estado como o setor privado estão preocupados com o contrabando de cajus, identificando-o como um constrangimento chave do lado da oferta para os processadores domésticos de caju. Para complicar ainda mais as coisas, os atores significativos do mercado, como ETG e METL, compram grandes quantidades de castanha de caju em bruto e operam processadores em ambos os países. 

O livre comércio provavelmente levaria a um declínio no contrabando de cajus e nas redes informais que o possibilitam, mas poderia ser politicamente insustentável de realizá-lo. Em muitos aspectos, isso torna a questão um microcosmo para o futuro pós-conflito do comércio transfronteiriço. Quaisquer esforços para melhor integrar as economias como parte de um plano de reconstrução podem exigir um reequilíbrio do desenvolvimento das infraestruturas em direção ao leste de Cabo Delgado e Mtwara, onde os projetos de gás natural estão a impulsionar o crescimento econômico. Em última análise, a integração significará um regresso ao movimento relativamente livre de pessoas e bens antes da insurgência. Com as prioridades das forças de segurança agora provavelmente dominando a planificação em ambos os lados da fronteira, se a reintegração for parte da reconstrução, será necessário um impulso político significativo. 

Planos de Reconstrução de Cabo Delgado 

Numa apresentação aos parceiros internacionais no final de Setembro, o Primeiro-Ministro moçambicano Carlos Agostinho do Rosário deixou claro que o seu governo acredita que o conflito em Cabo Delgado está na sua fase final. No seu discurso de abertura, do Rosário disse que os recentes sucessos militares da coligação de Moçambique, Ruanda e da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral “dão-nos confiança na normalização gradual da vida” nos distritos afectados pelo conflito. Com o governo a prever que a violência insurgente está a acabar, decidiu inaugurar uma fase de reconstrução pós-conflito com a elaboração de um plano de reconstrução para Cabo Delgado.

Conforme discutido no relatório mensal anterior do Cabo Ligado, não é de todo óbvio que o conflito esteja chegando ao fim. Com o governo moçambicano determinado a agir como se fosse, no entanto, vale a pena investigar o que o plano de reconstrução diz sobre as prioridades do governo para a vida pós-conflito em Cabo Delgado.

Tanto a estrutura do plano quanto a retórica do governo em torno dele enfatizam a urgência de reconstruir a província após a destruição dos últimos quatro anos. Embora do Rosário tenha dito em seu discurso que a situação de segurança determinaria o ritmo com que os deslocados seriam autorizados a retornar às suas comunidades de origem, ele também reconheceu que o tempo é essencial para que as intervenções do governo ajudem a evitar uma catástrofe alimentar entre os deslocados. Entre as prioridades imediatas do governo, disse, está a distribuição de sementes e fertilizantes “para o relançamento da produção agrícola, a fim de capitalizar a estação chuvosa que está prestes a iniciar”. De facto, esse processo decorreu em Outubro, com o Ministro da Agricultura, Celso Correia, e o Chefe da ADIN, Armindo Ngunga, entregando pessoalmente insumos agrícolas aos deslocados no distrito de Ancuabe. Em termos mais gerais, o plano do governo visa gastar cerca de 200 milhões de dólares norte-americanos no próximo ano, na busca do que chama de “ganhos rápidos” na reconstrução da infraestrutura e na expansão da capacidade do Estado em distritos afetados por conflitos.

No entanto, a estrutura do plano de reconstrução também indica a outra prioridade de Maputo para Cabo Delgado: o restabelecimento do controlo político sobre a província. Desde a descoberta de gás natural em Cabo Delgado, o governo moçambicano tem trabalhado para consolidar o poder político de Maputo sobre a província, um processo que só se acelerou ao longo do conflito. O plano de reconstrução empurra o controle ainda mais para as mãos do Presidente moçambicano. Como o plano deixa claro, os principais implementadores do plano em nível nacional são o Conselho de Ministros - o gabinete do presidente, que serve à sua vontade. A nível provincial, a implementação é liderada pelo Secretário de Estado Provincial, com o Governador Provincial explicitamente relegado a um papel de “assistência”. A distinção é importante porque, ao abrigo das recentes reformas constitucionais de Moçambique, os governadores provinciais são eleitos directamente pelos cidadãos de cada província, mas os Secretários de Estado provinciais são nomeados pelo presidente. 

Em certo sentido, essa centralização de controle é útil para a execução da agenda do presidente. O Presidente Nyusi tem repetidamente focado no emprego jovem como um objetivo importante para Cabo Delgado, tanto como um caminho para o desenvolvimento econômico quanto como uma forma de prevenir o recrutamento de insurgentes. Essa prioridade está refletida em uma proposta de orçamento para gastos com reconstrução no distrito de Mocímboa da Praia, em que o departamento de educação, juventude e tecnologia do distrito está programado para receber quase metade dos 42,5 milhões de dólares norte-americanos  alocados para o distrito. Os serviços de segurança distrital, que receberiam o segundo maior tranche no orçamento proposto, receberiam apenas cerca de 16% dos fundos. A reconstrução das infraestruturas do governo central do distrito e a reconstrução das unidades de saúde públicas são as duas categorias seguintes de despesas mais importantes, com 13% e 6% do orçamento, respetivamente.

Noutro sentido, no entanto, a centralização da implementação permite à Frelimo prosseguir a consolidação política com o dinheiro dos parceiros internacionais. O orçamento total para reconstrução é de 300 milhões de dólares norte-americanos em três anos. Isso não inclui os projetos de desenvolvimento planejados através da ADIN, mas ainda é várias vezes maior do que a despesa anual do Estado em Cabo Delgado nos anos que antecederam o conflito. Numa era em que Moçambique está ostensivamente descentralizando o controle do governo e dando às províncias e comunidades mais voz sobre como são administradas, a implementação da operação de reconstrução através da presidência agrava o desequilíbrio de recursos entre os líderes locais e o presidente. Mesmo que o dinheiro fosse distribuído apenas com base no mérito, seria impossível para as pessoas em Cabo Delgado escapar à conclusão de que o acesso a fundos de infraestruturas cruciais depende da aprovação do presidente - que também é o líder do partido Frelimo.

Além disso, há muitas evidências no orçamento proposto para o distrito de Mocímboa da Praia de que existe uma margem nas despesas de reconstrução que pode ser usada para encher os bolsos dos aliados políticos. Por exemplo, no orçamento, o governo do distrito central pretende gastar 500.000 meticais (7.833 dólares norte-americanos) em 150 fotos do presidente e bandeiras nacionais para mostrar dentro e à volta dos edifícios governamentais reconstruídos - cerca de 52 dólares norte-americanos em cada par de bandeira e fotografia. Esses são símbolos importantes do Estado e despesas necessárias para restabelecer a soberania do Estado em um distrito que esteve por muito tempo sob o controle dos insurgentes. No entanto, o gabinete distrital do Instituto Nacional de Acção Social também reserva dinheiro para comprar fotografias do presidente para os seus novos gabinetes - a cerca de 6.000 meticais (94 dólares norte-americanos) por fotografia.

Mais seriamente, o orçamento apresenta estimativas de custos bastante diferentes para os suprimentos básicos que serão necessários para reconstruir a governação do distrito. Quatro diferentes gabinetes distritais reservaram dinheiro para a construção de tendas para alojamento temporário dos funcionários que estarão na vanguarda da reconstrução do poder do Estado em Mocímboa da Praia. As estimativas de custo por tenda variam de 1.800 meticais (28 dólares norte-americanos) para o governo central distrital a 10.000 meticais (156 dólares norte-americanos) para o serviço público de saúde e incríveis 50.000 meticais (783 dólares norte-americanos) para o gabinete distrital de atividades económicas. Este tipo de discrepância não representa grandes quantias em dólares norte-americanos no esquema de corrupção do governo, mas são precursores do tipo de orçamento criativo que poderia financiar o que equivale a um sistema de patrocínio direto da presidência às comunidades de Cabo Delgado. Se implementado, tal sistema poderia deixar os cidadãos de Cabo Delgado com ainda menos controle local sobre seu futuro político do que tinham antes do conflito.

Programas de Treinamento Internacionais

A insurgência em Cabo Delgado expôs o facto de as forças armadas moçambicanas não estarem preparadas para contra-insurgência. Um  relatório de segurança de Junho de 2020 do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CEEI) da Universidade Joaquim Chissano fez uma crítica franca às limitações dos serviços de segurança moçambicanos, apelando a uma reestruturação abrangente, que vai desde a resolução de deficiências de equipamento à melhoria da formação até o desenvolvimento de estratégias e táticas aprimoradas para lidar com o terrorismo em evolução e as ameaças de insurgência. 

Maputo tem estado à procura desse apoio. Uma série de treinamentos têm sido providenciada por empreiteiros privados, países vizinhos e a comunidade internacional. Com a Missão de Formação da União Europeia aprovada em Outubro, vale a pena relembrar os programas de formação passados ​​e presentes em Moçambique para perceber se foram eficazes e coerentes na sua resposta aos desafios enfrentados pelos serviços de segurança moçambicanos.

Os primeiros programas de formação divulgados em resposta ao conflito foram dirigidos pela empresa militar privada sul-africana Dyck Advisory Group (DAG), que deu formação a uma equipa de 120 homens da polícia moçambicana (PRM) na segunda metade de 2020. O treinamento tinha como objetivo promover o desenvolvimento de uma capacidade de “força de fogo” no seio da PRM, que combinaria meios terrestres e de asa rotativa para conduzir operações ofensivas contra os insurgentes. Com o governo moçambicano transferindo o controle sobre o esforço de contra-insurgência da PRM para os militares moçambicanos (FADM) no início de 2021, no entanto, o conceito de “força de fogo” foi efetivamente cancelado. Apenas um componente desta unidade PRM viu alguma ação na sequência do ataque a Palma, em Março de 2021. Não está claro se esta equipe treinada foi mantida junta ou está agora dividida dentro das estruturas da PRM.

Em Fevereiro de 2021, Moçambique contratou o fabricante sul-africano de armas Paramount Group para fornecer meios aéreos e veículos blindados, bem como treinamento associado por meio de sua recém-criada Divisão de Treinamento e Suporte Avançado com seus parceiros sediados em Dubai, Burnham Global. Isso incluiu o treinamento de pilotos e equipes de apoio em solo para helicópteros de combate recém-adquiridos e treinamento para um lote de veículos blindados recém-adquiridos. 

O treinamento de duas empresas da FADM foi fornecido pelas forças do Zimbábue antes do acordo da Missão da Força em Estado de Alerta da SADC em Moçambique (SAMIM), embora não seja claro o que o treinamento compreendeu. O Zimbábue forneceu treinamento como sua principal contribuição para a SAMIM. Em Agosto de 2021, o Ministro da Defesa do Zimbábue anunciou que enviaria mais de 300 treinadores para esse fim. Porém, até o final de Outubro, isso ainda não havia acontecido. Nenhuma explicação oficial foi dada para além da alegação de que está pendente um acordo de forças (SOFA). Isto está pendente desde o início de Agosto, apesar do fato de que o SOFA da SAMIM existente já prevê treinamento (ver Artigo 3, Seção 1 (e)). Nenhuma menção específica foi feita de um compromisso de formação bilateral no comunicado da 12ª Sessão da Comissão Permanente Conjunta Moçambique-Zimbabwe na reunião de Defesa e Segurança convocada em Maputo em meados de outubro. 

O apoio de Ruanda inclui o compromisso de fornecer um componente de treinamento e capacitação, mas, como acontece com o acordo geral sobre cooperação de segurança, os detalhes disponíveis ao público sobre o que isso compreenderá foram limitados, além do foco geral na cooperação civil-militar e no policiamento comunitário. Uma recente publicação sugere que isso só ocorrerá depois que a força de Ruanda tiver concluído seu papel operacional. No início de Novembro, o, comandante da PRM, Bernadino Rafael, anunciou o início de um treinamento de seis meses de forças mistas fornecido pelo Ruanda, com foco em sequestro, terrorismo e tráfico de pessoas e drogas. Os programas incluirão também formação em contra-espionagem, que decorrerá fora de Moçambique.

A etiqueta do preço para Moçambique sobre novos equipamentos e formação por empreiteiros privados e outros, como o fornecido por Ruanda e Zimbabwe, é desconhecida. Investigadores de organizações da sociedade civil estima que os custos de treinamento por empreiteiros privados tenham sido superiores a 40 milhões de dólares norte-americanos. Ainda não se sabe como a missão de Ruanda está sendo financiada, embora o presidente de Ruanda, Paul Kagame, tenha indicado várias vezes que isso está sendo feito sem financiamento externo. 

Outros treinamentos são pagos por aqueles que os fornecem, como parte de pacotes de apoio internacional. Desde 2020, os Estados Unidos têm oferecido dois módulos de treinamento de curto prazo focados na construção de capacidades especializadas para as unidades de combate de elite da FADM. Este programa de Treinamento Conjunto de Intercâmbio Combinado (JCET) concentra-se no treinamento por e para forças de operações especiais. Um curso JCET para fuzileiros navais moçambicanos foi realizado entre Março e Maio de 2021; 100 comandos da FADM completaram outro curso de treinamento de seis semanas no início de Setembro. Além dos JCETs, outra missão de treinamento dos EUA em Junho e Julho de 2021 forneceu um curso de Cuidado de Baixas em Combate Tático e Livesaver de Combate projetado para melhorar a taxa de sobrevivência das tropas em situações de combate para 60 membros da FADM. Módulos de treinamento adicionais não foram anunciados, mas  é de se esperar.

A EUTM é a componente de treinamento mais abrangente atualmente em prática. Na sequência de uma decisão do Conselho da UE em Julho de 2021, foi oficialmente lançada a 15 de Outubro como parte do compromisso da UE de “apoiar uma resposta mais eficiente e eficaz das forças armadas moçambicanas à crise na província de Cabo Delgado”. É uma missão de dois anos que irá treinar onze companhias - aproximadamente 2.000 soldados - em uma Força de Intervenção Rápida dentro da FADM. Terá como base a missão de formação portuguesa - um programa de formação de quatro meses com 60 formadores que teve início em Maio de 2021. Com efeito, Portugal manterá o papel de liderança no programa, que será comandado pelo Brigadeiro-General de Portugal Nuno Lemos Pires. O treinamento também será fornecido por instrutores da Finlândia, Espanha, Itália, França, Grécia, Romênia, Bélgica, Luxemburgo e Estônia.  

O treinamento incluirá um foco em "preparação operacional, treinamento especializado, incluindo em contra-terrorismo, e treinamento e educação sobre o cumprimento da legislação de direitos humanos e do direito internacional humanitário, incluindo a proteção de civis, e sobre o respeito pelo Estado de Direito". Também irá “apoiar o desenvolvimento de estruturas e mecanismos de comando e controle da [Força de Intervenção Rápida].” Em meados de Dezembro, 140 formadores estarão in situ divididos entre duas bases de treinamento, uma para comandos e outra para fuzileiros navais.  

Prevê-se que o custo inicial de quase 20 milhões de euros aumente pelo menos quatro vezes, quando mais gastos em equipamento forem autorizados por Bruxelas. O treinamento será escalonado ao longo dos dois anos, em parte para permitir que os formandos qualificados sejam identificados. Os que já realizaram formação com instrutores portugueses serão incluídos no pool de formação da EUTM. Não está claro se os membros da  PRM treinados pelo DAG também serão elegíveis.

A EUTM tem um mandato específico para “coordenar as suas atividades” com outros atores internacionais e uma postura pró-ativa a esse respeito pode aumentar as perspectivas de maior coerência. No entanto, a eficácia disto dependerá da vontade de Moçambique de promover tal abordagem. Nenhuma coordenação eficaz entre os vários programas internacionais de formação em Moçambique será possível sem clareza entre as entidades formadoras e Maputo sobre os objectivos estratégicos globais das forças moçambicanas.

A UE pode trazer lições aprendidas com os desafios das suas outras missões de formação no Mali, na República Centro-Africana e, talvez o mais significativo, na Somália. A missão da UE na Somália está em curso desde 2010 e a eficácia do apoio da UE tem sido prejudicada pela falta de uma visão estratégica acordada para a arquitetura de segurança da Somália. 

Tanto as missões de treinamento da UE quanto dos EUA enfatizaram a centralidade dos padrões de direitos humanos e a importância de construir relações entre civis e militares. A EUTM, especificamente, concordou com um mecanismo de monitoramento que avaliará a conformidade do formando com os direitos humanos e o direito internacional humanitário. Esse enfoque será reforçado pela construção de uma abordagem de política integrada de gênero e direitos humanos em apoio à missão com agências multilaterais intergovernamentais e não governamentais.

No entanto, o treinamento da UE e dos EUA não fornece mentoria de campo, uma questão preocupante levantada em uma avaliação de Dezembro de 2020 da missão da UE na Somália. Dada a experiência limitada de campo de combate dos comandantes moçambicanos, este é um componente crítico que pode ser fornecido por outras opções de treinamento. O treinamento do DAG previa um papel de mentoria de campo e alguns analistas acreditam que os instrutores do Zimbábue poderiam ser bem adequados para desempenhar esse papel.  

Embora as forças operacionais tenham reconhecido a importância de melhorar a coordenação, as comunicações e o compartilhamento de inteligência no campo, isso continuará sendo um grande desafio no que diz respeito aos vários programas de treinamento em curso. Moçambique detém a responsabilidade pontual de maximizar a coerência entre estas formações para garantir que se complementam e reforçam mutuamente. A eficácia a longo prazo dos programas dependerá da capacidade de Maputo para incorporar os programas de formação num conceito estratégico geral para as suas forças de segurança.

SADC Prorroga SAMIM

A 5 de Outubro, o  Orgão da Troika da SADC (para Política, Defesa e Segurança) concordou em prorrogar o destacamento da  SAMIM por mais 90 dias. Esta decisão não expandiu a missão para além dos números existentes, contudo, devido à falta de fundos disponíveis para apoiar a missão, com os países que contribuem com tropas a terem de se desdobrar-se dentro dos orçamentos nacionais para financiar as suas contribuições. Espera-se uma nova extensão em Janeiro, uma vez que a situação de segurança não terá sido totalmente consolidada. O chefe da SAMIM, Professor Mpho Molomo, já indicou que os actuais desafios de segurança influenciaram a intenção da SADC de enviar mais tropas terrestres para áreas de Cabo Delgado onde as ofensivas do SAMIM desalojaram os insurgentes. Uma expansão das operações estará, no entanto, dependente dos fundos disponíveis. A SADC apelou à comunidade internacional para apoiar a missão, mas não forneceu detalhes do que está especificamente a pedir. Muito dependerá do papel que Moçambique preferir para a SAMIM. Até à data, a sua atitude em relação à intervenção regional tem permanecido tépida, e há uma impressão persistente em alguns quadrantes de que o envolvimento do bloco regional não seria bem-vindo por Maputo durante um período mais longo.

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